terça-feira, 14 de maio de 2013

O Corpo Nu

          A arte oriental ( na China e no Japão), que evoluiu ligada à religião e à meditação, deu preferência a temas de paisagens, brumas e nuvens, cenas búdicas, caligrafia, em seguida flores e plantas, belas mulheres e bichos em último lugar.
          Em países árabes, por influência da religião muçulmana, a arte inspirou-se na percepção do infinito ( o menor dentro do maior desdobra-se para alcançar a beleza absoluta). Padrões geométricos, filigranas, tessituras, arabescos, ramagens e a caligrafia foram desenvolvidos em profusão e a arte islâmica recusou a representação do corpo despido.
          Na arte ocidental os antigos gregos buscaram a representação do corpo através da observação direta do real: o escorço no desenho dos membros, as texturas dos pelos e da derme, o volume dos músculos e a expressão corporal. Suas pinturas e esculturas representavam deuses, semi-deuses, ninfas e heróis.

          Durante a Idade Média  o dogma cristão impedia a representação do nu, com exceção do corpo de Cristo semidespido na cruz e coberto de chagas, e Adão e Eva no paraíso.



         O Renascimento (séc. XV) renovou o gosto pelo estudo da anatomia, e a partir daí   pintores e escultores renascentistas modelaram tanto os santos católicos como os  deuses pagãos. Em 1538 Ticiano pintou "Vênus de Urbino":
         A expansão e influência da cultura grega por toda Europa (difundida pelos romanos conquistadores) aprofundaram  a experiência e regulamentaram  a arte acadêmica, com base  na beleza idealizada.
          Até o final do século XIX, na Europa,  o corpo nu de deuses e deusas pagãos eram vistos  com naturalidade. No entanto,  as primeiras representações realistas do corpo feminino - como a pintura de Edouard Manet "Olímpia" (1863), que retrata uma prostituta cujo olhar direto foi considerado insolente e vulgar -  foram menosprezadas pelo público.


 Na sequência do realismo (séc. XX), e  misturando  a ficção , o íntimo e o profano encontra-se a arte  de Pierre Klossowski com seus "Tabeaux Vivants".

          No Brasil, no séc. XIX, o ensino artístico seguia os modelos europeus, cuja representação do nu estava ligada ao ideal clássico. A evolução para o Romantismo permitiu a introdução de figuras indígenas na literatura e na pintura -- como  "Moema" (1863) de Vitor Meireles.

          Os silvícolas já tinham  sido retratados anteriormente por pintores viajantes como Albert Eckhout e Debret. A pintura corporal dos silvícolas, feita com urucum, jenipapo e calcário, servia de enfeite ou fazia parte de ritual, sendo retirada e substituída tão logo cumpria sua finalidade. Povos africanos provenientes do Congo e Moçambique também portavam pinturas corporais, algumas com escarnificação.
          Hoje vê-se um retorno da pintura corporal, na difusão de tatuagens ( permanentes), num esforço para identificação, nomeação ou adição estética. No atual  mundo incerto e massificado, essa  moda reflete a ânsia do brasileiro de perceber-se único, mas apegado a signos, emblemas, ornamentos que o defina e oriente, muitas vezes de inspiração tribal.
          Na arte contemporânea ( laica) o corpo é "um campo de batalhas", suporte ou meio de expressão artística, trabalhado ora na superfície com múltiplas performances, ora no interior, polo de integração e desintegração formal.
          Lia Chaia desenha o corpo com uma caneta: a caneta circula sobre a pele, faz espécie de ritual de reconhecimento, como uma brincadeira de criança; repete os movimentos até o fim da carga da caneta.

          Ana Maria Maiolino desperta a memória corporal, engole um longo fio, e a imagem do vídeo resultante se desdobra no tempo, repete-se infinitamente.

         Nazareth Pacheco aborda o lado estético das práticas de manipulação do corpo para  tratamento de pele, de cabelo, lipoaspiração, implante cirúrgico, etc. Apresenta objetos cortantes e de perfuração que remetem ao medo e à repulsa.

          Victor Arruda pinta o corpo todo estraçalhado, despedaçado como referência de perda e de violência sofrida.

          Cristina Salgado insere  feminilidade às esculturas de imagens díspares do corpo, como dedos muito longos que indicam uma direção, e formas inusitadas que se unem de modo surpreendente.

          Outra abordagem parece incrementar o embate: é o interesse pelos mortos-vivos, zumbis e vampiros no cinema, teatro, performances, e expressões afins. Até o  filósofo David  Chalmers acredita  que os zumbis são fisicamente possíveis...Mas, se  ao rei absolutista cabia a decisão de deixar viver ou fazer morrer, hoje cabe aos cientistas a decisão de fazer viver (inseminação artificial) ou deixar morrer( eutanásia). Transformação inquietante e problemática que engendra a obsessão pelo corpo dos ressuscitados , daqueles aos quais o direito ( de vida e morte) não se aplica mais.
          Direção mórbida e irreverente, coloca a arte no limite entre a fascinação e a repulsa, a violência e a complacência com a desintegração física. Demanda ao artista muita criatividade na elaboração de personagens, mas para o público levanta sérios questionamentos relativos à recepção da imagem. Que consequências psicológicas trará  para o espectador o assédio de tantas imagens violentas e deprimentes? O futuro dirá, e poderá constar da exaltação do insólito, do avanço das doenças psicossomáticas, ou do inesperado retorno ao sagrado, ao desejo de união entre o corpo e a alma em busca da perfeição, da harmonia, da beleza , da paz, da integridade e da compaixão. 
          "A alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivente".- disse Aristóteles.


         
         
         

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